segunda-feira, 1 de dezembro de 2008


A CASA

Há certos monstros brancos que teimam em rondar minha casa. Eu fico horas observando-os oculto entre as cortinas, tentando indentificar-lhes a constituição. Um enigma temeroso em minha vida se tornou essa desesperada busca. Procuro insistentemente proteger minha matilha. Salvaguardar as paredes desta casa. Eles querem apoderar-se de mim. E em uma noite talvez tenham conseguido, enquanto dormia eles invadiram meus sonhos. Perturbações noturnas, suor, calafrios e vômitos. Eles marcham em volta de nossa casa. Eu escuto os sons dos coturnos. Já contei, em muitas noites, os grãos de horas, os minutos sincopados do relógio. Enlouqueci, fui morar em altas torres, mas voltei são para salvaguardar esta casa. Talvez hoje sejam eles que enlouquecem e nos espreitam pelas esquinas das janelas ( afinal, quem são as pessoas que criam as esquinas para as janelas? ). Já fui aristocrata, mas vendi tudo, quando eles apareceram, para conviver apenas com as paredes brancas desta casa. Nunca nos enfrentamos, seus olhos fogem de mim. Nem seus rostos sei como são. Não nego a minha condição de covarde, mas sei que além de covardes eles são ignorantes da vida real que corre lá fora e que não vêem, enrustidos que estão em seus capuzes. Minhas armas são simples: apenas o olhar e algumas palavras, presente de um poeta. As portas estão todas abertas, mas meu espírito nú os espanta. Falta-lhes coragem para enfrentar o simples. Não é fácil despojar-se e assumir a condição de ser errante. A noite desce e agora eles arrastam suas correntes, prisioneiros de suas próprias ignorâncias. Prisioneiros das limitações de seus corpos ( afinal, são sempre os impotentes que nos gritam as regras). São eles os vizinhos que cochicham, as carolas da igreja, os presidentes das Ligas da Moral ( que têm muito de amoral). A nós, eles chamam de anárquicos, indivíduos em situação duvidosa, pecadores, loucos. Aos monstros nada importa mais do que a observação com olhos satânicos, inescrupulosos e frios. Nada mais agradável que o tricô e a conversa perversa. E esta mesma multidão que se engrossa a cada rua em que passamos cadastrando-os, ronda minha casa. Observando-me com os olhos clínicos de médicos sádicos. Estes dias tivemos uma conversa e propus o fim desta guerra fria, depois de minutos de conchavos, me entregaram contratos com milhares de folhas, me gritaram cláusulas e por fim me expulsaram da caserna. Daqui deste canto, fico pensando se algum dia conseguirão usar palavras e assumir o prazer de seus corpos. Aqui observo esta marcha cotidiana, este estranho ritual matutino a que se entregam estas criaturas. Corcundas, arfantes, carregam os pesos de suas próprias leis e, incrível, sorriem o sorriso comprado ali no conglomerado da esquina. Sorriem e parem criaturinhas sem olhos e com orelhas de longo alcance. Eles assassinaram quase toda a minha família. Alguns fugiram, escaparam num bote pelo rio abaixo da casa. Eu poderia ter ido também, mas talvez seja esta maldita esperança, herança de minha mãe, que me fez ficar. Não sei realmente...fico confuso ao falar sobre isso. Há sete anos estou aqui, neste canto de sala, relendo dia e noite velhos clássicos. São estes os únicos objetos que permiti continuarem a me pertencer. E estas são as únicas coisas que me ligam aos fugitivos. O dia em que eles fugiram era uma noite fria, nebulosa, de ar amargo. Sinto ainda o cheiro dos cabelos de meu pai na palma de minha mão. Os corvos marcham ruidosamente em volta de minha casa e a marcha se torna cada vez mais apressada, como se quisessem me enlouquecer. Talvez agora eu tenha chegado a alguma conclusão em minhas observações. Escreverei aqui na página deste livro algumas considerações: no dia tal, mês tal, em ano corrente, às tantas horas, constatei Eu que talvez meus observadores possam ter um certo aspecto de corvos. Uma cabeça preta, uns olhos que imagino perversos e esses passos de mau agouro. E essa ronda por minha casa. Hoje faz sete anos que estou aqui. Sete invernos de janelas embaçadas. Sete verões de janelas abertas. Primaveras sem flores, outonos sem frutos. Sólo infértil e ácido, ladrilhos frios e esse minuano zumbindo. Sete aniversários. Esta é a sétima noite em que a Lua senta sobre o chão de minha casa e que dialogamos. Ela trouxe um litro de vinho branco e eu preparei alguns legumes temperados. A Lua me dá notícias de meus fugitivos. Estão na Bessarábia, prósperos fabricantes de vodca. Enquanto conversamos, corvos marcham sobre a casa - é essencial para o comitê a vigilância das conversas, dos gestos, dos afetos. Bêbados, eu e a Lua, nos aninhamos e dormimos juntos pela noite. Sem o amor há sete anos, somente este caso com a Lua. Esta manhã receberei o Magnífico Senhor Governador desta província. É preciso arrumar a casa sem deixar vestígios do amor feito. Sisudo e de sapatos de verniz, meu juiz examina minha alma de cima a baixo. Circunspecto (porque é preciso que os juízes sejam esta palavra). Duas outras criaturinhas anotam. Os corvos cessam a marcha. Chove. Há tempos que a chuva não aparece sem artifícios. Os olhos raivosos de nosso querido chanceler, ministro, governador, escriturário, professor e juiz, Fulano de Tal, se voltam para os meus. A chuva cai pesada e morna. As amarras se dissipam, estou livre para minha fuga. Mas, para onde? Escuto o rio debaixo de minha casa crescendo com a chuva. Meus clássicos pelo chão, minhas roupas puídas na mala e nem mais uma palavra. Minha amante voltará esta noite e encontrará a casa vazia. Apenas meu cheiro em suas mãos. As criaturinhas devolvem meus números burocráticos. Os corpos se perfilam e marcham em direção a outras casas. O bote me espera, do mesmo jeito que esperou meus fugitivos. Visto meu corpo nú e desço. Sem palavras. Agora, meu cotidiano se modifica. Um cotidiano solitário de remos e busca. Apenas o bote, a mala e os clássicos. Vou remando, meu novo destino, rumo ao Sol. Antes que o mar me engula.


(imagem: fotografia intitulada "A Casa", de Gerson Tessler (RS)- capturada no google images)