terça-feira, 28 de abril de 2009

Janete e o grego


























A Janete El Haouli é uma grande amiga. Ela me enviou esta semana o texto de apresentação de seu livro que Manuel Portela fez sobre seu livro Demétrio Stratos durante lançamento em Coimbra, Portugal, em 2007. Um belo texto.



Uma voz sem sujeito
por Manuel Portela



Como desvincular a voz da linguagem falada e do sujeito emissor?» Esta pergunta, que Janete El Haouli formula na página 93, é uma boa aproximação quer à criação vocal de Demetrio Stratos (1945-1979), quer à tentativa de entendimento dessa criação que este livro constitui. Na sua análise da obra de Stratos, a autora propõe o conceito de voz-música para tentar dar conta da errância vocal que encontra na prática de Stratos. Aquilo que designa como «nomadismo da voz» seria resultado dessa errância, que é simultaneamente fisiológica e cultural. O potencial multifónico tem expressão desde logo no raríssimo intervalo de frequências na voz de Stratos, que o próprio músico não se cansou de tentar conhecer e explorar. A experimentação vocal de Stratos realiza um percurso etnopoético e etnomusical caracterizado por uma migração sincrónica entre tradições, do ocidente ao oriente. Este nomadismo musical antropológico representa uma crítica da codificação musical e linguística da voz, em direcção à materialidade essencial da relação voz-boca. A multifonia de Stratos confunde os papéis simbólicos associados aos timbres e registos de voz (incluindo a sua codificação como masculinos ou femininos), tornando-os simultâneos e pluralizando-os. Janete El Haouli refere-se a uma tentativa de chegar ao pré-cultural nesse busca da corporalidade da voz e da escuta da voz.

Um dos argumentos essenciais para percebermos a teoria da voz que a autora nos propõe está na percepção de que o trabalho vocal de Stratos representa uma crítica das formas ideais codificadas pela tradição musical europeia no que respeita ao uso da voz. E, nessa medida, põe em causa o sujeito burguês hegeliano dono da sua voz, mostrando a pobreza contida na redução da voz às categorias do discurso musical e da linguagem verbal. Ao desvincular a voz quer da linguagem falada, quer da repressão vocal na música europeia, Stratos recupera o poder cosmogónico do canto na ordenação do caos e acentua a corporalidade da voz como veículo do desejo. Entregue à mecânica articulatória e respiratória que lhe permite produzir os sons como extensão das paixões corporais, a voz recusa a idealização da forma e habita a plenitude do presente. Na recusa daquilo que é referido na obra como a «circularidade da repetição» e da «memória adestrada» (p. 74), é possível a aproximação ao pré-linguístico e ao pré-musical.

Esta dimensão pré-linguística é esclarecida através da comparação da imersão na escuta da voz com a relação entre a mãe e a criança. A voz-música da mãe, isto é, a mediação vocal dentro da qual a criança constrói o seu sentido de si, revela simultaneamente a presença de um eu que fala, um espelho sonoro no qual a criança se projecta, e a possibilidade de auto-consciência do corpo pela diferenciação sonora dos sons que ela própria produz. Nesse banho de sons ocorrem as trocas da criança com o mundo. Daí emergem a estruturação do sujeito e da linguagem. Ora aquilo que parece ocorrer nas vocalizações de Demetrio Stratos é um movimento que fluidifica o sujeito no magma sonoro do corpo, em que a voz recuperou a sua materialidade pré-semântica e se oferece como ruído, fragmento e puro prazer do instante.

Ao desvincular a voz da palavra torna-se possível imaginar uma voz sem sujeito, quer dizer, uma voz autónoma, que deixou de ser veículo de transmissão, seja de um conteúdo musical ou de um conteúdo linguístico. A boca deixa de ser o lugar de uma função comunicativo-verbal automatizada ou de um hábito expressivo institucionalizado. É a percepção de que pode ser recuperada essa relação da voz com a corporalidade e com o desejo que Janete El Haouli reconhece nas pesquisas de Demetrio Stratos. Além disso, a esta poética da voz, que explora a boca e o aparelho fonador para além dos códigos do discurso verbal e do discurso musical, corresponde uma poética da escuta. De uma escuta, como pretendia John Cage, capaz de apreender as particularidades insubstituíveis dos objectos de escuta e de se libertar da codificação dos sons musicais. Esta des-subjectivação da voz e da escuta permite aceder à dimensão erótica não-representacional dos sons.

Roland Barthes, citado por Janete El Haouli, escreve: «A escuta da voz inaugura a relação com o outro; a voz, que nos faz reconhecer os outros (como a letra sobre um envelope), dá-nos a conhecer sua maneira de ser, sua alegria ou sua tristeza, seu estado; transmite uma imagem do corpo do outro» (pp. 36-37). Voz e escuta surgem então como modos de conhecimento do desejo, próprio e alheio. O ouvinte participa na escuta como acto ritual. Liberta da barreira da língua e da palavra, a voz pode tornar-se «a arqueologia do ser humano» (p. 101), como refere Meredith Monk, ou, nas palavras da autora, a «língua no ouvido do outro» (p. 60), capaz de libertar a ninfa Eco do seu chamamento sem resposta. Diz-nos ainda sobre Demetrio Stratos que a sua voz «libera propositadamente a explosão de sons prestes a se formar de uma garganta que inaugura o próprio espaço de sua criação» (p. 99). É este espaço de criação corporal que a voz Demetrio Stratos torna possível escutar como voz-música, e que este livro permite conhecer melhor.


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