quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Um rio de palavras




Pedro (romance)
Luiz Taques
(Capa: Regina Menezes)
Kan Editora/ 2013

 Um rio de palavras 


Karen Debértolis



Buraco Quente é o mundo e, ao mesmo tempo, apenas uma cidade `a beira de um rio doente. Neste lugar, grotão do planeta, entretecem-se, através dos fios das palavras de um narrador em primeira pessoa, histórias e relações carregadas de rudeza, delicadeza, complexidade e simplicidade. Tudo, na mesma medida, expande-se em tensões e calmarias numa narrativa que tem como temática principal a perda.
O romance “Pedro” do escritor e jornalista Luiz Taques, publicado pela Kan Editora e lançado no começo deste ano, desafia nosso fôlego emocional diante das ondulações de ritmo do texto semelhantes ao fluxo de um rio em sua vasta extensão.
A história concentra-se na longa carta que o irmão, em alto e bom som, escreve para Pedro após a morte do pai. É possível ouvir os tons de voz do narrador em seu desabafo com gosto de acerto de contas, rememorações do passado, reflexões sobre a vida, o mundo, a política, a intolerância, os conflitos sociais.
As agruras do mundo são meticulosamente expostas como feridas, a princípio intocáveis, através de metáforas utilizando elementos como os peixes que vivem naquele rio outrora tão fértil (“mulher é um animal de enfrentamento feito tucunaré”) e a natureza (“ele é tronco madeira, queria dizer que o camarada, ou  a mulher, era uma pessoa resistente”).
Tudo converge para o rio. Pessoas, experiências, sentimentos, emoções tudo navega ali no quintal aquático daquela cidade. Os peixes, além de alimento e sustento econômico, são ainda a constituição da alma daquelas pessoas. Mesmo doente e falível, um anti-herói de certa forma, o rio -“síndico ético” deste “enorme navio” que é a cidade e seus sujeitos - é a única salvação para cada habitante de Buraco Quente.
Entre os sentimentos que o irmão vai mastigando de maneira amarga, estão o rancor do abandono – de Pedro para com a família, das irmãs mais moças em relação `a vida ou da família de si mesma – e a traição. Seja a traição do ponto de vista amoroso, que grassa no escuro da noite na cidade, ou em outros aspectos da vida cotidiana – como na política, por exemplo.
 `A medida que a narrativa avança, as dúvidas surgem através dos comprometimentos de tantos nomes que a memória resgata de histórias mal contadas ou de boatos `a boca miúda. As dúvidas também pairam sobre possíveis  traições da mãe, que resiste bravamente diante das tristezas da vida como um “tronco de madeira avelhado”, e do pai, morto e que agora mantém seu passado em mistério inacessível.  
Estas incertezas, estes segredos que podem estar mantidos a sete chaves no guarda-roupas, o qual a mãe cuidadosamente tranca ao sair de casa, ecoam nas tantas histórias corriqueiras de pequenas e grandes traições de personagens diversos. Um dos motores da vida social da cidade.
As rudezas da vida são abordadas com a delicadeza de um texto em que o exercício da linguagem é evidente. A narrativa segue aos borbotões, verborrágica e atraente. O narrador vai destilando memórias e observando os pequenos pecados do local.
Como alguém onisciente e onipresente, entretece nestas linhas tortas outros conflitos que são universais e transformam Buraco Quente no mundo. E não mais na cidade poeirenta `a beira de um rio doente que, aos poucos, perde seus peixes.
Em uma destas passagens lembra quando o irmão sonhava em levar a mãe para viver na cidade grande, longe do rio. Fazendo uma projeção, o narrador imagina a mãe definhando lentamente no árido espaço urbano. Uma imagem sintetiza em que poderia resultar este trágico deslocamento, o qual se repete em tantas famílias: “e, como aliança no anular, controle da teve não escaparia mais da mão destra de mamãe”.
O olhar arguto e os ouvidos atentos de Taques, seu texto vigoroso e envolvente como a correnteza de um rio, são os ingredientes deste livro que faz um mergulho nas águas turvas das rudezas da vida.

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